Anticoncepção de Ensino de Filosofia para a Educação Básica Global: a Aprendizagem Filosófica Dialógica Transdisciplinar
Coordenador e Professor do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento da Universidade Federal da Bahia, Brasil
Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Epistemologia da Prática educativa
e-mail: dgaleffi@uol.com.br
Resumo: Trata-se da exposição da tese caracterizada como anticoncepção de ensino de filosofia: a aprendizagem filosófica dialógica transdisciplinar. Parte-se da compreensão da impossibilidade de se poder ensinar filosofia e da abertura para se fazer-aprender a filosofar. A afirmação de que é impossível ensinar filosofia se apoia na experiência vivida do autor, e encontra respaldo em Kant. Mas não se trata de repetir o que Kant já disse a esse respeito, mas de propor uma filosofia na educação básica como atividade pensante transdisciplinar, deixando de ser o ensino de filosofia uma ilustração histórica para se tornar uma aprendizagem criadora transdisciplinar. Não se tratando mais de ensino e sim de aprendizagem, a filosofia não seria mais uma disciplina de conteúdos homogêneos, mas uma atividade permanente de reflexão sobre as ações vividas e de projeção sobre as ações ainda virtuais. Uma proposição que requer outra formação do licenciado em filosofia e que tem como meta a transformação humana no plano mundial e global. Um filosofar dialógico criador. Uma aprendizagem criadora. Relata também a experiência de um grupo de professores de filosofia da rede municipal da cidade do Salvador na Bahia/Brasil, grupo reunido no AVA Moodle/UFBA – Criação filosófica em rede, e que hoje projeta uma matriz curricular para a inserção da filosofia da 5° à 9º série do ensino fundamental, com todos os obstáculos existentes.
Palavras Chave: Anticoncepção de ensino, Ensino de Filosofia, Educação Básica, Aprendizagem filosófica, Fazer-aprender a filosofar.
Teaching Philosophy´s Contraception for Global Basic Education: Dialogical-Philosophical Transdisciplinary Learning
Abstract: It is about the thesis characterized as teaching philosophy´s contraception: dialogical-philosophical transdisciplinary learning. It starts with the understanding of the impossibility to be able to teach philosophy and openness to do-learn philosophy. The affirmation that it is impossible to teach philosophy builds on lived experience of the author, and finds support in Kant. But this is not about to repeat what Kant has said, but to propose a philosophy on basic education as transdisciplinary thinking activity, no longer teaching philosophy a historical illustration to become a creative transdisciplinary learning. Since it is not anymore about teaching, it is about learning, the philosophy would not be a homogeneous discipline of content, but a permanent activity of reflection about lived actions and projection on actions still virtual. A proposition that requires another training for graduates in philosophy, which has as goal the human transformation on global scale. A dialogical philosophy creator. A creative learning. Also reports the experience from a group of philosophy teachers in the municipal city of Salvador in Bahia / Brazil, group assembled in Moodle AVA / UFBA- Philosophical Creation Networking, and now designs a curriculum for the philosophy insertion since 5 ° grade to 9th, with all the obstacles.
Keywords: Teaching Contraception, Teaching Philosophy, Basic Education, Learning philosophical, Make-learn philosophy.
1. Introito
Parto de uma convicção de que filosofia não se ensina, se aprende na convivência dialógica.
Esta convicção me permite colocar uma questão que me parece importante neste fórum, em que professores de filosofia discutem o seu mister, sua práxis pedagógica na educação básica.
A questão é a seguinte: Por que a filosofia não se ensina, mas se pode aprender?
Está questão desencadeia uma série de rizomações conceituais tensivas e alcança também o próprio conceito de filosofia. Nem vou perguntar o óbvio. Mas vou partir do óbvio: por que ninguém mais se pergunta o que é a filosofia?
Uma das respostas é uma obviedade: porque todos os que não se perguntam já sabem ou estão convencidos de saber o que a filosofia é. É nesta perspectiva que se fala em “ensinar” filosofia, quando se considera a filosofia como uma criação grega, romana, medieval, moderna e contemporânea. Algo, portanto, pertencente ao passado glorioso da criação espiritual humana, com suas figuras emblemáticas e insuperáveis em tudo. Fala-se, então, em Filosofia histórica, em História da Filosofia como o conteúdo a ser ensinado. A filosofia mesma em seu exercício criador aberto não é considerada.
É mais ou menos algo assim que Kant (1985) já havia assinalado também na sua Crítica da razão pura. Se a filosofia fosse um processo completamente concluído e acabado, poder-se-ia ensinar a sua história. Mas a filosofia não é uma ciência perfecta como a geometria, por exemplo, um saber consumado, por mais que alguns acreditem piamente neste suposto fato. Não me interessa aqui entrar no mérito de Kant, mas simplesmente aludir ao fato de a questão já ter sido pensada por um dos maiores criadores da filosofia de todos os tempos. E ter sido pensada como uma provocação em relação aos dogmas conceituais de seu tempo, porque de fato ele tinha consciência de ter alcançado algo inusitado através do seu próprio esforço: uma compreensão de que o sistema da filosofia não estava encerrado, como pretendia a metafísica de sua época.
Deixando de lado essa contenda clássica, por que posso afirmar que não se ensina filosofia, não tendo necessariamente que me apoiar no argumento de Kant – sem desmerecê-lo?
Esta é sem dúvida uma afirmação polêmica e que não encontra ressonância em muitos dos colegas e profissionais da área. Mesmo assim insisto em afirmá-la desenvolvendo uma posição própria e apropriada a respeito.
2. Um pequeno desenvolvimento da questão
Por força da experiência fiquei convencido de que toda a formação disciplinar vigente o máximo que pode pretender é o ensino da filosofia em sua história já consumada, sem que seja preciso a realização de nenhum esforço além do que já foi feito pelos iluminares da filosofia passada. Bastaria seguir a boa tradição europeia já tão longamente consolidada, seguindo a sua modelagem de conteúdos considerados os mais importantes. O modelo do que deve ser ensinado disciplinarmente como filosofia viria de cima para baixo, do Olimpo para o vale dos comuns mortais e ignorantes seres humanos atrelados ao senso comum, prisioneiros das ilusões mentais.
Passei a não acreditar nesta modulação tendo em vista a educação humana para a plenitude vivente. Plenitude vivente – do que se trata?
Trata-se, em síntese, daquilo mesmo que a filosofia descortina em sua origem e que é obscurecido em seu processo histórico, através das escolas de pensamento constituídas e que chegam à Universidade no século de sua fundação. Uma Filosofia que foi moldada pela escolástica medieval e que logo é subsumida na Teologia. Uma filosofia teológica cristã. Qualquer outra coisa estranha ao modelo greco-romano-cristão simplesmente não podia existir. Na mesma proporção do geocentrismo medieval, a filosofia era concebida como fato consumado.
Na modernidade a filosofia mudou de paradigma com Descartes e realizou sua revolução copernicana com Kant, também graças ao trabalho criador dos empiristas ingleses, alcançando logo em seguida sua consumação historial com Hegel. A filosofia acaba com o fim dos grandes sistemas?
Não, apenas uma saga encontrou sua resolução absoluta, inclusive modelando o processo disciplinar delimitando a formação escolar clássica que se pode encontrar no antigo liceu como História da Filosofia. O modelo disciplinar, então, é que alcançou a sua consumação histórica. Mas nós continuamos seguindo-o quando o seu tempo já passou. O tempo da “ilustração” foi consumado. Impõe-se agora o tempo do “conhecimento e da informação” para fins de desenvolvimento econômico e em seguida cultural. Bem, é o que se ouve nas sonâncias das forças constituídas dominantes.
Dentro do regime disciplinar da escola europeia e da nossa por efeito de aculturação, que é um regime de grande valência formativa baseada na ilustração ou na ênfase a conteúdos determinados e considerados importantes, a filosofia aparece como uma disciplina entre outras disciplinas, perdendo o seu caráter agregador de conhecimentos e ganhando em seu contorno historiográfico consagrado.
No modelo disciplinar é consenso adotar a modelagem de conteúdos historiográficos em todas as áreas do conhecimento. E isto tendo em vista a aprovação no exame de estado, que é a mesma lógica que rege os concursos para cargos públicos, que medem a retenção de conteúdos absurdamente extensos, o que requer um tipo de estudo de memorização e não necessariamente de apropriação e investigação problematizadora. Neste modelo a palavra “ensino” é aceita na formação de homogeneidades profissionais, mas não é uma palavra própria para nomear o que a filosofia pode fazer conosco na formação básica, como atividade do aprender a pensar.
A palavra agora não é mais “ensino” e sim “aprendizagem”: não se pode ensinar filosofia, mas se pode fazer-aprender filosofia, isto é, se pode filosofar de maneira própria e apropriada. Mas, como concretamente filosofar diante do modelo pedagógico fundado no “ensino” e não na aprendizagem própria e apropriada do pensar? E como seria esta aprendizagem?
Tenho este posicionamento: a filosofia na formação ou é um filosofar próprio e apropriado ou é matéria de ilustração que pouco potencializa para a formação ética, estética, política, gnoseológica, epistemológica, ecológica e ontológica dos sujeitos-sociais envolvidos.
Então, compreendo por que a dicotomia entre o modelo clássico de ensino e o modelo complexo de aprendizagem. Compreendo como no modelo disciplinar o filosofar, segundo uma radicalidade da aprendizagem comum e partilhada, não tem espaço e nem tempo para poder acontecer.
Então, ou se pensa em outra formação voltada para a aprendizagem do filosofar, ou vamos formar professores de filosofia que não são filósofos e vão ensinar a História da Filosofia não como filósofos e sim como repetidores de filósofos. A História da Filosofia encontra o seu lugar legítimo no campo da formação profissional do filósofo/pesquisador. E isto na medida em que hoje o filósofo profissional é um exegeta da tradição histórica consagrada, necessariamente também um técnico em determinado setor da produção filosófica, algo que exige a formação específica na área em cursos superiores de Filosofia, para aqueles que escolherem esta formação densa.
Mas esse não deveria ser o foco da formação que intenciona introduzir o filosofar na formação básica como um caminho criador, e não mais como uma repetição mecânica de uma tradição gloriosa, mas encoberta, entulhada e requisitando de atualizações hermenêuticas permanentes para ser de novo apropriado em seu vigor criador. Esta perspectiva de formação não leva em conta a singularidade irredutível de cada educando e de todo educador como de qualquer ser humano. Algo que se assemelha a colocar a carroça na frente dos bois, ou querer ensinar algo que em sua linguagem formal não alcança ou afeta o educando, impedindo o estabelecimento do laço afetivo que abre pra a aprendizagem do pensar apropriador, convidando-o a aprender uma matéria a partir de uma atitude investigativa implicada com seu próprio projeto ontológico.
E é por amor à tradição que intento este caminho, também porque o tempo humano não é uma mera espacialização geométrica de uma medida constante, iludindo quanto à imutabilidade dos acontecimentos, porque tudo está no fluxo e só para os que partilham do fluxo o aprender a pensar se torna uma incorporação: um saber próprio e apropriado do não saber que origina todo saber.
Assim, temos observado a presença de poucas brechas ou fissuras na superfície dos acontecimentos disciplinares favoráveis ao filosofar no regime disciplinar, e temos observado a construção de linhas de fuga ainda muito marginais, mas que tomam posição em relação à formação filosófica para além dos muros da academia, em uma expansão de sua serventia na formação humana para mundos melhores. Uma filosofia que é um filosofar próprio e apropriado, e não pode deixar de ser um acontecimento!
Portanto, quando defendo esta posição o faço a partir da práxis e procuro ser fiel ao vivido e ao vivente. Compreendo aqui de que modo o método fenomenológico pode nos orientar na investigação radical do que se pode fazer-aprender com a Filosofia como atividade dialógica por princípio. Um filosofar que acontece diferente em cada caso e cuja garantia de universalidade é um ato intuitivo referente à disposição aprendente do ser humano a partir de suas circunstâncias.
Foi nesta perspectiva que pude conceber um filosofar na educação básica perpassando todas as disciplinas, o que seria uma transdisciplina. A filosofia seria uma transdisciplina cujo foco concentrar-se-ia no desenvolvimento do pensamento crítico de cada educando, o que se pode exercitar a partir de atividades filosóficas centradas na investigação da autoformação para o pensar apropriador, pelo uso de todos os meios didáticos que se pode inventar para a resolução de conflitos de aprendizagem .
É o trabalho feito na atitude filosófica, que é uma disposição para a investigação da “verdade” própria e apropriada que vai favorecer a aprendizagem do pensar com sentido. Nesta perspectiva, o filosofar transpassaria todos os momentos da aprendizagem como uma atualização e incorporação da atitude investigativa radical. Cada momento da aprendizagem de outros campos disciplinares seria perpassado pela atitude filosófica incorporada.
Assim, o filosofar não seria uma disciplina de conteúdos, mas uma atividade investigativa permanente, que pode ser graduada em vários planos de desenvolvimento, a começar da vivência estética, lúdica e artística e alcançando também, em graus mais complexos, o questionamento metafísico da tradição, pelo uso de recursos que não precisam e não devem se limitar ao texto escrito.
Deixemos a exegese densa dos textos escritos e publicados dos luminares da filosofia para a formação do filósofo profissional, o que não corresponde ao desejo de todos, Isto, entretanto não está dizendo que o texto canônico está excluído do filosofar básico e sim que o uso do texto filosófico será mais um canal do filosofar e não terá um comando externo que lida com a repetição de uma questão fechada com respostas prontas, mas servirá para fazer refletir sobre o grau mais propriamente filosófico do ofício do filósofo acadêmico, Mas há também filósofos não acadêmicos e algo no óbvio senso comum que pode ser um campo para novas conexões de sentido partilhado, de consideração vivida de uma questão que envolve todos os participantes de uma dada formação em uma investigação que ao ser feita vai inventando também o próprio modo de fazer o investigado. O filosofar como criação. A aprendizagem filosófica como criação.
Nessa perspectiva acabei compreendo o filosofar como polilógico, polifônico e polissêmico, abarcando vasto campo de habilidades e competências cognitivas e operativas. Assim, o limite do filosofar não se atém apenas ao texto escrito, mas compreende também o ver, o falar, o escrever e o fazer de forma singular. Isto se associa ao próprio lastro da filosofia histórica em suas divisões em matérias e disciplinas distintas e complementares. Coisa que os grandes filósofos sempre realizaram: todos eles trataram sempre de um conjunto complexo de funções e disposições humanas. Sempre se ocuparam de aspectos variados do pensar e não eram especialistas em nenhum filósofo, porque formaram uma filosofia própria, que buscava compreender a totalidade do saber para além do dado e já conhecido.
Essa forma abrangente do filosofar que hoje se perdeu na especialização e até mesmo na hiperespecialização, pode ser o horizonte de inspiração da formação filosófica na educação básica, compreendendo a filosofia como um filosofar criador aberto ao acontecimento do imprevisível.
As aulas de filosofia podem se tornar acontecimentos se realizadas em outra ambiência acadêmica e com outra finalidade que não aquela da ilustração cultural. Mas isto requer uma nova formação do licenciado em filosofia, que ainda está em formação e não se encontra visível como um objeto acabado e estático. Esta outra formação requer ser inventada por alguns que a tomem como tarefa, mas não para atender à educação disciplinar e sim para contribuir na mudança radical do sistema educacional vigente.
Assim encontro sentido para o filosofar na educação básica em todas as idades, desde a infância primeira até o final do ciclo quando o educando está no auge de sua fase adolescente e mesmo na educação de jovens e adultos o sentido é evidente: o desenvolvimento humano em suas possibilidades criadoras abertas. Mas como isto é possível se já não sabemos mais pensar de modo próprio e apropriado? É isso mesmo?
A formação do licenciado em filosofia carece de horizonte de desenvolvimento potente e permanece na inércia do instituído sem experienciar o instituinte como criador de outros acontecimentos. Isto de modo geral. Mas há também linhas de fuga em desenvolvimento, mesmo no regime disciplinar vigente.
Acompanho um movimento nascente nos jovens que agora estão engajados nesta tarefa formativa e que já advertem que eles mesmos estão sendo criadores no processo, compreendo a linha de fuga que pode originar um novo campo para a formação do professor de filosofia da educação básica. E hoje presencio o desenvolvimento de um grupo que foi batizado de Criação filosófica em rede, grupo formado por professores de filosofia concursados para o ensino de filosofia em todas as séries do Ensino Fundamental das escolas do Município de Salvador. Eles foram convidados a formularem a matriz curricular de filosofia, e estão empenhados nisso, e estão se virando e construindo uma rede de relações entre os professores de filosofia da rede para que possam dialogar e realizar um trabalho colaborativo que permita realizar o trabalho filosófico desde o primeiro ano do ensino fundamental. Devem construir uma matriz que abarque os nove anos do ensino fundamental. E como estão resolvendo isto? Pelo lado simples: a matriz deve ser o mais simples possível, como um GPS que é um instrumento de localização espacial que permite viajar de um lugar a outro com metas definidas, assim como permite a aventura localizada pela certeza de que não se vai perder o rumo em uma exploração aberta da aprendizagem filosofante.
Um dado marcante é que são todos formados em filosofia, alguns fizeram também o bacharelado além da licenciatura e muitos já fizeram especialização na área, mestrado e alguns já vão fazer doutorado. É, portanto, um grupo de pessoas que continuam aprendendo a pensar de modo próprio e apropriado e já se autorizam inventar novos caminhos aprendentes. Todos são diferentes, cada um com suas experiências únicas e com seus filósofos prediletos, mas todos reunidos na construção de outros agenciamentos no aprender a pensar como pedra fundamental para o êxito de uma formação chamada básica.
O acontecimento também mostra a rizomação do processo ligado ao “ensino de filosofia” em todo o Brasil e em alguns países vizinhos. São muitas as frentes hoje consolidadas e este congresso seguramente reúne os que têm se dedicado ao problema do ensino de filosofia com mais afinco, reunindo uma significativa expressão do que vem sendo construído na formação do professor e na práxis pedagógica.
O acontecimento narrado projeta esperança para os que por vocação e formação se lançaram na tarefa hercúlea de fazer da aprendizagem filosófica um eixo fundamental para o desenvolvimento humano básico, algo que extrapola o horizonte do filósofo profissional e seu ofício. É preciso que uma nova geração de filósofos floresça neste exercício para que se possa transformar a formação do licenciado que terá a tarefa de filosofar em diferentes graus de intensidade, nunca confundindo os extratos e nem tão pouco os subsumindo em uma síntese dialética. Isto é algo que ainda precisa continuar se reinventando e recriando cotidianamente. A diferença é que os protagonistas deste processo descrito são também pesquisadores nascentes e estão atentos ao registro do processo e à sua correta difusão pública. Estão atentos à construção do conhecimento resultante desta práxis orientada por uma matriz comum.
O sentido de matriz curricular que estão trabalhando contempla a filosofia como criação, e toma o conjunto de temas da tradição filosófica como eixos geradores e focos intencionais: ontologia, ética, estética, teoria do conhecimento, lógica, política e até ecologia, tudo no plural. Tudo na perspectiva da exploração do desconhecido. Tudo sempre do início. Assim, a necessidade de uma matriz curricular se tornou uma oportunidade para unificar o processo em construção, mas sem a perda da inevitável diversidade criadora. Todos são criadores. Criar não é uma exclusividade de alguns eleitos, mas se pode aprender no fazer, através da experiência apropriadora própria e apropriada. Tudo visando à aprendizagem do pensar que nos faz ser abertos ao acontecimento.
Foi também na direção de uma síntese que pude conceber a aprendizagem filosófica básica como um aprender a ser, um aprender desdobrado em múltiplas dimensões correspondentes aos pilares da educação projetados pela UNESCO para o século XXI e publicado no livro organizado por Jacques Delors (2004): aprender a conhecer/aprender a pensar, aprender a viver junto, aprender a fazer, tudo na direção do empoderamento ontológico de cada ser-aí em seu contexto e suas circunstâncias.
Para mim o aprender a ser significa uma totalidade segmentária do desenvolvimento humano pleno, em sua polilógica. O filosofar como aprender a ser é apenas um signo vazio de sentido imediato, porque para fazer sentido tem que ser tomado apenas como indicativo de uma duração real que não se pode nunca capturar em sua totalidade, exceto na experiência da transcendência que retém alguma figura como se retém um momento capturado por uma máquina fotográfica.
Em uma analogia, o filosofar está para o ato do aprender apropriador assim como a filosofia sem filosofar está para o ensinar ostensivo e disciplinar, homogêneo e excludente, geométrico e não questionador do dado que vem da autoridade externa.
O filosofar em sua polilógica propicia a aprendizagem das diversas funções cognitivas que constituem nosso projeto ontológico comum, necessariamente tangenciando atividades de ouvir, de falar, de escrever, de refletir sobre o vivido de discorrer sobre o vivido e de fazer. Este aspecto metodológico pode ser mais bem descrito em outra oportunidade, porque aqui o importante é o compartilhamento de uma construção metodológica de ensino de filosofia em curso que leva em conta a formação para o filosofar aprendente e criador na relação como os outros. É, portanto, uma atividade coletiva e que envolve também um sentido de aprendizagem ética e estética pertencente ao campo da práxis, sempre um saber aprender a fazer, a partir do fazer com sentido.
3. Considerações inconclusivas
A partir da perspectiva sucintamente apresentada de ensino de filosofia, o que me deixa alegre e esperançoso é poder acompanhar o desenvolvimento de um agenciamento curricular para inclusão das atividades filosóficas em todas as séries de todas as escolas da rede municipal da cidade do Salvador. Os autores do projeto em andamento já se sentem autorizados a realizar uma criação filosófica em rede, o que se projeta como um novo campo de formação para o licenciado em filosofia, que agora tem pela frente o desafio da aprendizagem filosófica própria e apropriada em novos agenciamentos criadores, sempre imprevisíveis. É também uma questão de escolha, de decisão: queremos um filosofar homogêneo e vazio ou intencionamos um filosofar criador?
Fiz a minha escolha: sigo aprendendo a fazer aprender a filosofar no filosofar mesmo em sua radicalidade aprendente: sempre um recomeçar infinito, sempre voltado a esvaziar o vaso para de novo preenchê-lo com outras águas. Um fluir incorrigível.
Publicamente agradeço aos agenciadores do projeto brevemente apresentado, os jovens filósofos e filósofas que decidiram trilhar este caminho inusitado e aproveitar a oportunidade aberta pela Secretaria de Educação do Município de Salvador. A inclusão da atividade filosófica ao longo da educação infantil e de todo o ciclo do ensino fundamental – havia me esquecido de incluir a educação infantil que também deve ser contemplada na matriz curricular em construção – pode fazer com que filosofia contribua fundamentalmente com a reforma do modelo de educação daqui para frente. As escolas devem ser lugares de aprendizagens significativas para os educandos, e não locais de confinamento que visam “disciplinar os copos” em padrões homogêneos de comportamento, de cima para baixo.
Mas esta mudança depende da existência ou não de profissionais preparados para esta tarefa tão promissora de fazer aprender a pensar, isto é, a filosofar em língua de si, língua própria e apropriada. Um filosofar para todos e não apenas para tão poucos que decidirem seguir a profissão de filósofo acadêmico. Um filosofar que não cabe ao filósofo profissional decidir do seu gabinete, mas cabe ao filósofo profissional da educação saber fazer, ou melhor, saber fazer-aprender de modo criador. Como se faz algo assim? Ora, se faz sempre no acontecimento do fazer: a errância do aprender a pensar, nada que não se possa aprender continuadamente e sem início e nem fim derradeiros. Sempre do começo. Sempre recomeçando. Sempre aprendendo e desaprendendo a pensar e a dispensar o já pensado para deixar ser o impensado no plano de imanência do acontecimento apropriador: criação de heterogêneses, sempre um espanto encarnado que se pode compartilhar com alegria, deixando o outro ser o caminho de sua saga ontológica própria e apropriada.
Para encerrar esta breve exposição de um acontecimento em aberto, como havia dito, pela experiência cheguei à compreensão de que não se pode ensinar filosofia, mas se pode aprender a pensar, isto é, a filosofar, que também não se ensina, mas se pode aprender na convivência dialógica aberta ao acontecimento partilhado publicamente, acontecimento acêntrico, rizomático. Além do controle da razão sempre certa, mas sem perder de vista a razão sinuosa que como a água vai ajustando-se à topografia do terreno por onde escorre.
NOTAS
Palestra proferida por ocasião do II Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, realizado no campus da UFPE, em Recife, de 12 a 14/12/2012, na Mesa redonda “Concepções de ensino de filosofia”, dia 13 de dezembro de 2012, das 9:30 às 12:00h.
Referências
DELORS, Jacques. Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 9 ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC : UNESCO, 2004.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985.
This article was published on January 30th: School Day of Non-violence and Peace in Global Education Magazine